
Triagem

CENTESE
História
Com o cair da noite, os braseiros são acendidos. O vento, que uiva como um cão faminto, morde as gargantas expostas. Safiyah ergue a lanterna e observa a fila de sobreviventes que entra pelos portões dos Senhores do Ferro. Alguns feridos, outros levados em macas improvisadas. Com um gesto, ela indica uma tenda cujo interior brilha com a luz cálida de uma fogueira. "Eles vão congelar aqui fora", afirma ela. "Leve-os para dentro, rápido." O hospital dela, por assim dizer, é humilde diante das estruturas de pedra que o cercam. Porém, ela tinha supervisionado a construção quando chegou… além de tê-lo abastecido e trabalhado nele. Era tudo que ela podia fazer. Os portões se fecham atrás dos Senhores do Ferro. Ilesos, vivos. Zavala está entre eles. Ela o conhece, aquele que é teimoso o bastante para discutir, mas não o suficiente para ignorá-la. Zavala está conversando com os companheiros. "—ataques coordenados pela Casa dos Demônios. Se aproveitarmos a oportunidade para retaliar—" "Retaliar?!" Zavala se vira para Safiyah, que o encara de volta. "Temos feridos aqui! Não precisamos de violência, precisamos de suprimentos!" Os outros se afastam, deixando Zavala ali — para ter a mesma briga com a mesma mulher. "Como é?" Ela não se intimida. "Eu fui clara", desafiou ela. Um drone — um Fantasma? — flutua no ar logo atrás do ombro de Zavala — Targe, o nome dele é Targe. "Não tenho nada a ver com isso", comenta Targe. Safiyah fica nas pontas dos pés e captura o olhar dele, que logo se esquiva. "Uma investida contra os Decaídos vai garantir sua segurança", expõe Zavala. "Como eu já lhe expliquei antes." "Você quer nos proteger?" Safiyah aponta para o mísero hospital. "É assim que se faz: garantindo que a gente tenha o que precisa para viver." "Ela não está errada", comenta Targe. "Você está participando da conversa ou não?", indaga Zavala, lançando um olhar rápido para o Fantasma e se virando de volta para Safiyah. "Você não entende", retruca ela, indo embora. "Aonde você vai?", pergunta ele. Uma pergunta boba. Ela passa pela aba da barraca. Zavala vai atrás, motivado pela discussão. Ele sempre quer ter a última palavra. Safiyah lava as mãos numa bacia, depois se vira para o soldado. Ela dará a ele o que fazer. "Lave as mãos", comanda ela. Zavala hesita, mas obedece. "Pegue isso", continua ela, entregando um punhado de trapos limpos. Depois, ela vai até um dos catres, mantendo a cabeça baixa enquanto inspeciona uma ferida recente que ainda sangra na atadura suja. Ela a remove com cuidado. "Venha cá", diz ela, e o instrui a pressionar os trapos na ferida, estancando o sangue. Zavala abre a boca para falar de novo, mas Safiyah ergue a mão. "Eu entendo a situação", afirma ela. "E você? Sabe como é difícil sobreviver neste mundo?" "Sei", responde ele, afrouxando a pressão. Safiyah aponta, estala os dedos, e Zavala aperta de novo. "Sem o seu Fantasma?" Zavala nada diz. Esse aqui vai precisar de suturas, Safiyah pensa consigo mesma. Ela faz a contagem mental dos poucos suprimentos restantes enquanto busca antisséptico e luvas. "Não são só os Decaídos. Não são só os Senhores da Guerra. É a doença. A fome. O frio." Ela faz um gesto para que Zavala saia do caminho, e ele o faz. O ferido, infelizmente acordado, treme, enrijece o corpo e segura um grito com os dentes cerrados enquanto a mulher limpa o ferimento com a maior delicadeza possível. "Não deixamos essas coisas para trás como vocês fazem." Há um tom de pena nas palavras dela. Safiyah acha que ele vai discutir, retrucar, erguer a voz. Só que Zavala continua calado, pensativo. Ela ergue o olhar e observa como ele desvia os olhos, como cerra o maxilar. Ele quer falar. Safiyah lhe dá as costas, tirando as luvas. Outra paciente, uma mulher com um curativo na têmpora, tinha se mexido enquanto dormia e derrubado o cobertor. Com cuidado, Safiyah pega o cobertor pela ponta e puxa para cobrir a mulher de novo. Depois toca a testa dela, para conferir a temperatura, mas não há febre. Safiyah sorri. Quando ela ergue o olhar, Zavala a está observando. "Os feridos me procuram." Ela não baixa os olhos, não curva a cabeça. "Não a vocês."

-RAFIA
História
Safiyah tricota sob o resto da luz vespertina, sentada diante da barraca. A primavera acabou de chegar, e o frio faz os dedos dela ficarem vermelhos e sua respiração enevoar o ar. Zavala conduz exercícios de treino no pátio, lutando com civis. Alguns aguardam sem jeito, segurando armas pesadas demais para empunharem. Outros se movem com mais confiança. Safiyah volta a olhar para as agulhas. Então, ela ouve um grito de dor. Sangue escorre pelo ombro de um civil, manchando a roupa dele. Safiyah vê o ferimento de onde está. Ela se levanta e vai às pressas até eles, abandonando o tricô. "Você acha que o inimigo pararia depois de um ferimento?", ralha Zavala com severidade. Apesar do ombro ferido, o outro homem pega a arma do chão. Safiyah se aproxima e estala os dedos. "O que você está fazendo?" Zavala se vira para ela. Surge uma oportunidade: o companheiro de treino salta adiante, pegando Zavala de surpresa. A lâmina corta o antebraço dele, abrindo a pele e fazendo o sangue vivo espirrar. Os outros assistem boquiabertos, como se não esperassem que um Renascido sangrasse. Targe aparece, pronto para curar o ferimento. Safiyah ergue a mão para detê-lo. "Não", comanda ela. O Fantasma paira no ar, olha para ela, olha para Zavala. "O que você quer?", exclama Zavala. Ele tenta estancar o corte, mas o sangue escorre quente pelos dedos. Safiyah ignora Zavala e faz um gesto para o companheiro de treino. "Venha comigo", comanda ela. "Targe", chama Zavala, mas Safiyah estala os dedos de novo. "Você também. Quero lhe ensinar uma coisa. Venha." Ela entra na tenda hospital, sabendo que será obedecida. Ele obedece. Uma vez lá dentro, Safiyah inspeciona o ferimento de Zavala. Não é nada sério, mas é profundo o bastante para exigir a atenção dela. O assistente cuida do outro homem, que afasta o olhar com vergonha quando Zavala o espia. "O que você está fazendo?" indaga ele a Safiyah. "Acho que é óbvio", responde ela. Zavala e o Fantasma observam em silêncio enquanto ela limpa o ferimento. "É desnecessário", comenta ele, mas deixa Safiyah continuar. Ela traz a agulha curva, a pinça hemostática, o fio de polipropileno. Ferramentas que ela pode manusear com facilidade; recursos preciosos para um homem imortal. "Vou fechar o ferimento", anuncia ela, tocando o braço dele de leve com a mão enluvada. "Vou fazer seis suturas. Vai levar quatro, talvez cinco dias para sarar." A expressão de Zavala se suaviza. Talvez ele tenha notado que Safiyah está decidida. Ele afasta o olhar, encabulado. "Vou cuidar para que seus suprimentos sejam reabastecidos", afirma o Titã. "Só me diga do que você precisa." Safiyah sente uma pontada de surpresa com a promessa. Agora, ela responderá à primeira pergunta. "Você tem que saber como as coisas são para nós", explica Safiyah. Ela espera o consentimento; ele faz que sim com a cabeça. Ela perfura a ferida e puxa as bordas. Ele não estremece. "Como você aprendeu essas coisas?" Curiosidade sincera. A primeira sutura. "Com a minha mãe", veio a resposta. "E livros da Era Dourada." Safiyah aponta para uma estante improvisada com uma dúzia de livros. Velhos, esfarrapados, mas bem cuidados. "Eu gostaria de dar uma olhada neles", diz Zavala. Ela sorri, satisfeita. Segunda sutura. "Eu mostro mais tarde", concorda ela. Ao erguer o olhar, Safiyah nota que Zavala a encara com uma intensidade que ela não consegue identificar. Mesmo sem querer, ela sente um calor se espalhar pela pele. "Nós viajávamos", conta ela, rápido demais, os olhos voltando para a terceira sutura. "Para muito longe. De vila em vila. Minha mãe, meu pai, minha irmã e eu." Quarta sutura. "Papai morreu numa incursão. Mamãe, de uma doença. Minha irmã está bem a oeste daqui. Mas eu continuei viajando." "Por quê?", pergunta ele com delicadeza. Ela passa a agulha pela quinta sutura. "Sempre há mais gente para ajudar. Vou seguir em frente depois que terminar de treiná-lo", ela aponta para o assistente com um gesto da cabeça. Safiyah corta o fio depois da última sutura. O ferimento está fechado. Ela enrola uma bandagem com firmeza no braço dele. "Para onde você vai?", indaga Zavala depois de um silêncio tenso. Safiyah percebe que não sabe como responder. Os pensamentos dela não se estendem para além deste momento. Ela termina de atar a bandagem. "Pronto." Ele dobra o braço, estremece e para. Ela sorri. "A cura de verdade leva tempo." *** Naquela noite, ela ouve vozes no pátio vazio: Zavala e Saladino, parados junto a um braseiro, conversando em voz baixa. Safiyah espia da aba da tenda, escutando. "Ela é uma mulher habilidosa e formidável", afirma Zavala. Saladino está com o queixo empinado, quase com desprezo. Zavala é uma silhueta na luz da fogueira. "Não sou burro", rosna Saladino. "Vejo como vocês dois se olham." Safiyah arfa e se espanta. Quase não ouve as palavras seguintes de tão forte que bate o seu coração. "Não tenho nada além de respeito por ela", retruca Zavala. Saladino revira os olhos. Os dois se encaram por um longo momento. "Vivemos em mundos diferentes", argumenta Saladino com voz mais suave. "Você pode tentar abandonar o nosso, mas o deles vai rejeitar você." "Não acredito nisso", responde Zavala. "Acredite no que quiser. Mas qualquer vida que você construa com ela será frágil demais para você se prender." Saladino põe a mão no ombro de Zavala. Safiyah quase podia confundir o gesto como uma demonstração de compaixão. "Essa vida vai se quebrar", continua ele em voz baixa. "E vocês dois vão se machucar." Safiyah deixa a aba da tenda cair. Não olha para ver se eles ouviram.

-TAXIA
História
"Assim", explica Safiyah, fazendo uma volta com o fio de lã no dedo indicador dele. Zavala segura as agulhas com força demais, e ela pousa a mão nos dedos dele com delicadeza até senti-los relaxarem. Os dois estão sentados juntos diante do hospital. Safiyah ensina Zavala a tricotar sob o sol do fim da primavera. "Mas que complicado", comenta ele. "Só quando você não presta atenção", responde ela. Os olhares se encontram. Ela vira o rosto, sorrindo, para o céu da tarde. "Olha", exclama Safiyah. Plumas de fumaça no horizonte. Os dois se levantam rapidamente, e Zavala desemaranha sem jeito a lã dos dedos. A fumaça turva o céu. Decaídos ou Senhores da Guerra encontraram novas vítimas. Safiyah vê a expressão de determinação crescente no rosto de Zavala e entra no hospital para pegar o equipamento. Uma sirene soa no acampamento quando Safiyah emerge. Ela vai até os portões onde os Senhores do Ferro se preparam, e Zavala a pega pelo braço. "Você só pode estar de brincadeira", afirma ele, endurecendo a expressão quando vê que ela não está. "Tem gente em perigo", explica ela. "Não é seguro." "Por isso que eu tenho que ir." "Pelo menos espere até nós limparmos a área." Safiyah puxa o braço de volta e sai pelo portão antes que ele possa continuar discutindo. Os Decaídos emboscaram uma caravana. Safiyah corre pela fumaça negra vomitada por um trenó virado que esmaga as flores primaveris. Ela vai até uma mulher encolhida atrás de uma carroça com sangue escorrendo pela têmpora. Um homem jaz no chão atrás dela, segurando o estômago do qual as entranhas se derramam. Um Rebaixado salta na direção deles, mas Safiyah lhe crava uma faca no pescoço. Zavala lidera a investida principal até a caravana. Os Decaídos, guinchando uns para os outros, voltam a atenção aos atacantes quando rajadas de energia solar rugem no ar. Zavala corre até Safiyah, colocando-se entre ela e um Capitão que investe com lança de arco em riste, e a ponta se crava no peito do Titã. Ele tosse sangue e cai no chão, imóvel. Safiyah grita, horrorizada com a cena, mas pega a arma de Zavala e a ergue bem quando o Capitão se vira para ela. Safiyah dispara três tiros no peito e garganta do Decaído. Ela engasga com ânsia enquanto o éter se esvai do corpo dele. O cadáver tomba pesado sobre ela, que então o empurra. Targe ilumina seu Guardião caído e, com uma arfada forte, Zavala se reergue. Essa visão espanta Safiyah — um homem voltando à vida. Ele se recompõe, vê o Capitão morto no chão. "Está tudo bem?" "Sim", responde ela com voz trêmula. Safiyah dá as costas para o homem sem sorte que não se reerguerá e a mulher que chora ao lado dele. É no silêncio após a batalha que Safiyah escuta o choro de uma criança. Ela se levanta num pulo, vasculhando nos destroços, e encontra um homem morto agarrado a um embrulho irrequieto. Ela vira o corpo pelo ombro; o homem segura a criança com tanto cuidado e tanta força que Safiyah é obrigada a lhe quebrar os dedos para tirar o menino dos braços. Ela leva o bebê ao peito, segurando a cabeça delicadamente, e o choro vira um gorgolejar sussurrado. Safiyah começa a chorar. Pela criança nos braços, o homem morto que a segurou, o cheiro de sangue e éter. Por aqueles que ela não conseguiu salvar. As lágrimas são leves, e lhe vem um calafrio. Ela sente a palma de Zavala no ombro, descendo pelas costas numa consolação silenciosa. Safiyah suspira forte, depois se endireita e olha para ele. "Vamos protegê-lo", afirma Zavala, e ela concorda com a cabeça. Eles voltam com a criança. Safiyah o alimenta e o banha. Zavala sorri, segurando a criança nos braços. O menino lhe ergue as mãozinhas e o contempla com olhos grandes e castanhos. "O menino precisa de um nome", observa ela. Safiyah pensa por um momento e relembra o pai com carinho. "Hakim", declara ela, e fica decidido. *** Hakim cresce. Os meses se passam até que chega o verão e as cigarras cantam. Zavala visita Safiyah nos momentos de folga, e Safiyah acalenta o choro de Hakim quando Zavala está fora. Os recursos são parcos. Eles fazem o que podem. À noite, Safiyah abraça o calor de Hakim junto ao peito. Sente o subir e descer da respiração dele. Curva-se e beija os cachos no topo da cabeça dele. Zavala fica ao lado dela, com a mão na base das costas. As cigarras cantam — ela faz um gesto para que Zavala escute. As cigarras cantam. "Os gregos antigos acreditavam que esses insetos viviam para sempre", conta ela. "Renascidos toda vez que saíam da terra." Zavala passa os braços pelos dois. "Elas passam 17 anos no subsolo. Quase foram extintas. Então veio o Colapso… e agora elas voltaram a prosperar." Ela arrulha para Hakim por um momento. "Vou levá-lo à vila da minha irmã", decide ela. A expressão de Zavala se suaviza. "Nós vamos levá-lo", responde ele, e ela sorri. É assim que ele conta a ela. Zavala fala com Saladino na manhã seguinte. Quando se reencontra com Safiyah, deixou para trás o colar com o pingente de Senhor do Ferro.

ESTESIA
História
A irmã de Safiyah a recebe nos portões da aldeia com um olhar de incredulidade. "Amani", saúda Safiyah, sem jeito. Há um momento de silêncio antes das duas se abraçarem. Ela é bem-vinda. Então, Amani olha para Zavala e Hakim, e só ergue uma sobrancelha. Os dias se passam. "Acho que ela não gosta de mim", observa Zavala baixinho enquanto Hakim dorme no berço improvisado no lar de Amani. "Ela definitivamente não gosta de mim", acrescenta Targe ao surgir. "Por que vocês acham isso?", indaga Safiyah. "Ela falou 'Eu não gosto de você'", conta Targe. "Para nós dois." Safiyah franze o cenho. "Ela gosta do Hakim", observa. Terá que bastar. A vila da irmã é pequena, mas bem fortificada com um muro de estacas de madeira ao redor das casas. Os moradores extraem o sustento da terra com algumas plantas e centeio amargo e guardam os animais de criação no estábulo. Safiyah e Zavala constroem o lar ali. Os anos se passam. Hakim cresce. Perambula com os pezinhos instáveis de criança, de mãos dadas com Zavala. Claque, claque. Safiyah tricota na cadeira predileta dela, algo que antes lhe fora precioso e que tinha deixado para trás. Pela janela, vê Zavala e o filho treinando com espadas de madeira no campo atrás da casa. É uma brincadeira. O menino tem nove anos. Safiyah escuta o ruído do atrito entre as espadas de madeira no ar de outono. Os olhos voltam à lã. Claque, claque. O filho deles está com doze anos. Ela vê Zavala corrigir a postura de Hakim, erguer braços do menino e endireitar-lhe as costas. O jovem só bate na altura do cotovelo do pai. Targe esvoaça em volta. A lã corre pelos dedos de Safiyah conforme ela a passa de agulha a agulha. Claque, claque. O filho está com quinze anos. A manga do casaco que ela tricota cresce. É verão, mas ela trabalha para os meses frios que virão. A irmã está sentada ao lado, limpando um fuzil e contando balas. "Já passou da hora de uma incursão", comenta Amani, como se falasse de uma safra insuficiente, tempo ruim ou um bezerro perdido — só mais uma adversidade, inevitável. As balas tinem no colo. Safiyah abre o casaco de lã sobre os joelhos. "Para Hakim?", indaga Amani. Safiyah faz que sim com a cabeça. "Eles deixam de servir a cada dois meses. Ele também precisa de calças novas. Está pescando siri." O claque final de espadas se esvai, e ela ergue o olhar. Safiyah vê o luzir de uma lâmina de metal na mão de Hakim. Ela joga o tricô no chão e corre até os dois. A faca está na garganta de Zavala quando ela os alcança. "O que você está fazendo!" Não é uma pergunta. É uma repreensão. Zavala dá um passo para trás e aponta para a faca na mão de Hakim. "Estou ensinando ele a se defender." Safiyah pega o filho e o abraça bem forte. Beija o topo da cabeça dele, sussurrando com carinho contra os cabelos cacheados. No entanto, ele a empurra e se afasta, encarando-a com olhar desafiador. "Eu dou conta", afirma ele. "É só uma lição!" Safiyah olha para Zavala, balançando a cabeça, incrédula. "Ele tem que estar preparado para tirar uma vida", explica ele gentilmente, como se não tivesse pedido ao filho que lhe cortasse a garganta. "Ele é só um menino", retruca ela. Hakim respira fundo, franze o cenho e começa a falar. Zavala toca o ombro dele. "Você acha que os Decaídos se importam com isso?" A voz do rapaz soa sombria. Safiyah pega a faca da mão do filho e a segura pelo dorso da lâmina. Um fio para ferir, não para curar. Ela sabe que Zavala tem razão, e odeia esse fato. *** Naquela noite, a irmã de Safiyah fica acordada com ela, conversando à luz de velas. "Já faz anos", comenta Amani, estalando a língua. "Ele nunca vai ver as coisas como a gente. Eles não conseguem." "Eu não acredito nisso." "Eu sei que não." Amani ri, mas Safiyah fica calada, de cenho franzido. Ele tem que entender. A irmã suspira. "Ele te ama." Safiyah assente com a cabeça. "Ele ama o Hakim." Ela assente de novo. "Então talvez seja suficiente." Ao voltar para casa, Safiyah encontra Zavala observando Hakim enquanto ele dorme. Zavala se levanta, puxa o cobertor um pouco mais alto sobre o ombro de Hakim, depois toca o rosto do filho com os dedos. Safiyah percebe que, em todos os longos e nada invejáveis anos dos Renascidos, eles nunca foram crianças. Ela vai até Zavala, que a abraça, num pedido silencioso de desculpas. "Deixe ele ser uma criança só mais um pouco", sussurra ela. "Você vai ter saudades dessa época quando ela acabar."

ALGIA
História
Safiyah ouve a troca de tiros. Tap-tap-tap, como pássaros ciscando. Mas rápido demais. Alto demais. Zavala se levanta de repente. "Os Decaídos!" Um grito de terror lá fora. A Casa dos Demônios. Zavala já se foi porta afora antes que Safiyah possa falar. Ela pega o kit de socorros. O tiroteio fica mais alto, mais rápido. Gritos de dor, estertores de morte. Hakim tem dezessete anos. "Fique aqui", pede ela. "Fique em segurança." "Eu sei lutar", argumenta ele. Já está mais alto do que ela. "Por favor", roga ela. Relutante, Hakim concorda. Safiyah o abraça, fica ali por um momento, tenta sufocar o medo, depois segue o marido para a batalha. Decaídos escalam o portão da vila, desorganizados e liderados por um Capitão violento demais e ávido demais em estar onde o combate está mais acirrado. Os amigos e vizinhos que Zavala treinou erguem as armas e mantêm as posições enquanto são atacados pela massa. Safiyah vê o marido liderando a defesa, gritando comandos por cima dos tiros e berros. Um fazendeiro armado tomba ao levar um tiro na coxa; Safiyah está lá para arrastá-lo para longe do perigo, com torniquete e curativos na mão. Ela fica abaixada, repetidamente buscando os feridos conforme os Decaídos são rechaçados. Ela ouve uma voz — instantaneamente familiar, agora entremeada em medo, ressoando em meio ao caos. Safiyah se vira e vê Hakim desviando de um talho da lança de arco do Capitão Decaído. O golpe o desequilibra. Safiyah grita o nome dele. Hakim dá um passo para trás, com os olhos arregalados. O Capitão ergue a lança e crava a arma no corpo do filho de Safiyah. Zavala está ali de repente, derrubando a criatura com dois tiros e o executando com um terceiro. Safiyah corre até Hakim e desliza de joelhos ao lado dele. Uma vermelhidão escorregadia mancha as mãos dela, que pressionam forte o ferimento com bordas queimadas por energia de arco. O sangue brota da boca de Hakim quando ele tenta falar. Ele solta a arma — uma foice, uma ferramenta para ceifar talos de centeio — e os olhos se apagam. O cheiro da morte do filho assenta no âmago dos pulmões de Safiyah. Ela não ouve os passos de Zavala. Não ouve nada. A palma ensanguentada está no rosto do filho, enxugando as lágrimas frias deixadas para trás nos olhos sem foco. Ela não consegue respirar. Lentamente, ela tira a outra mão do ferimento de Hakim e o abraça. Sente o corpo do filho contra o peito, o peso dele nos braços. Lembra-se, por um instante, de quando ele finalmente ficou tão grande que ela não conseguia mais levá-lo no colo. "Safi", ela ouve, finalmente. Ela se vira para Zavala. Ele é uma silhueta contra o sol nascente, as novas mossas e rachaduras da armadura tremeluzindo na luz. Zavala vem até Safiyah com uma expressão de horror. Ela se pergunta se ele morreu também. Vira-se de volta para Hakim. Não há Fantasma para o filho dela. Zavala se ajoelha ao lado de Safiyah. Trêmulo, ele ergue o corpo de Hakim nos braços e os dois o levam para casa.

REXIA
História
Zavala pousa o corpo de Hakim na cama dele, deitando a cabeça do filho cuidadosamente sobre o travesseiro. Safiyah puxa o cobertor, trêmula, parando antes de cobrir o rosto dele. Ao estender a mão para o marido, ela percebe que está coberta até o cotovelo com o sangue enegrecido do filho. O sangue de um ferimento interno profundo. Zavala pega a ponta do cobertor do filho e o ajusta para cobrir o ombro de Hakim, com cuidado, como se tivesse medo de acordá-lo. *** "O que você vai fazer agora?" Amani sempre vai direto ao ponto. Hakim foi sepultado há um mês. Flores na lápide. As irmãs estavam sentadas com vista para o cemitério. O ar da noite está denso com o calor do verão. Tudo fica prateado ao luar. As cigarras cantam. O mundo não para a fim de testemunhar o luto dela. Safiyah balança a cabeça, calada. A irmã lhe abraça os ombros. "Você vai ter que decidir." O silêncio fica pesado. Amani a puxa para um abraço. "Ele era um bom menino", diz a irmã, e Safiyah ouve o tremor na voz dela. "Teimoso e corajoso, como o pai." Elas se separam, e Amani segura as mãos de Safiyah. A irmã abre um sorriso triste; Safiyah não retribui. O luto é solitário. Interno. Ela chora quando está sozinha. "Zavala visita o túmulo do Hakim todas as noites", diz Safiyah, enfim. Mas não naquela noite. "Durma", sugere a irmã. "Durma e pense no seu futuro. Aqui ou em outro lugar." "Você quer que eu vá embora?", indaga Safiyah. Amani balança a cabeça em gesto negativo e aperta as mãos da irmã. "Não, nunca. Mas quero que você encontre a felicidade de novo. E não acho que será aqui." *** "Traga ele de volta." Safiyah ouve a voz de Zavala ao voltar para casa. Ela segue o som até o quarto do casal. "Traga ele de volta", exige Zavala outra vez. A voz vacila. Safiyah espia pela fresta da porta destrancada. O marido está de costas para ela, falando com o Fantasma. "Não posso", responde Targe. Targe olha para Zavala. Ela vê que o Fantasma está tremendo. "Tome minha Luz e traga ele de volta." Cada palavra é um esforço. "Você sabe que eu não posso." "Você o faria?", pergunta Zavala, com algo surgindo na voz. "Você o traria de volta, se pudesse?" Se Targe respondeu, Safiyah não ouviu. Mas ela ouve o arrastar da arma de Zavala na mesinha de cabeceira. "Descubra um jeito. Traga ele de volta", implora Zavala. Safiyah não hesita ao ver Zavala erguer a arma. Ela abre a porta. O marido estremece e se vira, vendo-a parada na entrada. Cautelosa, Safiyah vai até ele, pousa a mão no braço dele e baixa a arma. Zavala cai de joelhos, e a arma despenca no chão. Safiyah chama Targe, que flutua até ela. A mulher segura o Fantasma nas mãos. Há um tamborilar, um calor, nas palmas das mãos dela. O olho azul pálido e singular do Fantasma a fita. Ela se lembra de todas as vezes que ele pairou pouco além do toque de Hakim, provocando, brincando. Naquele momento, ela sabe que Targe o amava também. "Não podemos mudar o que aconteceu", sussurra ela para o marido. "Isso não vai mudar quem somos." Safiyah acha que ele vai se virar e perguntar, "Quem sou eu?". Mas não acontece. Targe a deixa para pairar ao lado de Zavala. "Não posso ficar aqui", afirma Safiyah. Ele não diz nada. Zavala se conhece — e a conhece também. Ela está decidida. Safiyah examina o rosto de Zavala e vê Hakim ao olhar para ele. Vê a própria dor, refletida nos olhos dele. E vê a dor de Zavala também, tão infinita quanto os anos que ele sofrerá além dos dela. Safiyah desvia o olhar. "Eu não entendo a eternidade", afirma ela, triste. "Não sei se você entende. Mas você vai vivê-la. Eu não." Zavala inspira fundo, e o soluço se arranca do corpo dele. Safiyah olha para ele de novo. "Não se esqueça de nós, Zavala." A voz falha. "Durante todos os seus anos. Por favor." "Nunca."

LISE
História
A vila fica para trás, esvanecendo-se nas cores de um céu de fim de verão. Quando eles partiram, Amani segurou forte as mãos de Safiyah até ela prometer voltar para casa um dia. Para Zavala, Amani deu apenas um aceno com a cabeça e um sorriso triste. Logo, as construções de pedra do acampamento dos Senhores do Ferro surgem no horizonte. Zavala e Safiyah passam por onde encontraram Hakim pela primeira vez. Os corpos se foram, o sangue há muito fora absorvido pela terra. A vegetação cresceu em torno dos danos das árvores queimadas. No entanto, os fragmentos dos destroços enferrujados pelo caminho, já desprovidos de qualquer peça útil, ainda estão meio enterrados no chão. Nos portões, Safiyah coloca as agulhas de tricô nas mãos dele. "Para aquecer você", diz ela. Ele assente com a cabeça e agradece em voz baixa. "Você vai sobreviver", afirma Safiyah. Ela sabe que ele não tem escolha. Safiyah parte para encontrar as pessoas que precisam dela. Sente o olhar de Zavala fixado nela até os portões dos Senhores do Ferro desaparecerem no horizonte. *** Os portões do acampamento se abrem para Zavala, sozinho. Saladino fala pouco, nada julga, não recrimina. Diz apenas o seguinte: "O amor é um momento no tempo. Nós não somos." Zavala se pergunta, por um instante, se Saladino fala por experiência própria. Ele não pergunta, mas respira fundo e segue o Senhor Saladino. *** Passam-se décadas até ele receber uma mensagem de Amani — meio amassada e desbotada pela jornada incerta que a levou até Zavala na Última Cidade. "Venha rápido", dizia ela, "antes que seja tarde demais." Só que ele chega tarde demais. Amani está ao lado do túmulo, velha e curvada, em meio aos outros participantes. Ele acena com a cabeça e, ao vê-lo, a mulher abre um sorriso familiar e retribui o gesto num agradecimento silencioso. Zavala espera até que a maioria dos visitantes vá embora para se aproximar da lápide. Nas mãos, ele traz uma flor, colhida na jornada. Estava fresca quando ele a encontrou, mas está com as pétalas machucadas ao ser colocada gentilmente na terra mexida do túmulo. Zavala se levanta e vê uma mulher ao seu lado. Os mesmos olhos, calorosos e gentis. A filha dela. "Como você a conheceu?", indaga ela. Ele se espanta, incerto de como responder a uma pergunta tão simples de um pranteador para o outro. "Sou um velho amigo", responde ele, sem conseguir evitar que o cansaço transpareça nas palavras. A mulher o olha desconfiada; ele se pergunta, por um instante, se ela ouviu falar dele, da história dos dois. Do irmão. Ela, porém, só assente e agradece, e nada mais é dito. Anos depois, ele visita o túmulo da mulher. Depois, do filho dela. Do filho do filho dela. O cemitério se enche de lápides. Ele faz a jornada todas as vezes. Eles levam dez gerações para ir à Última Cidade. Os Ocultos contam a ele quando eles nascem, quando adoecem e quando morrem. Zavala nunca fala com nenhum deles enquanto estão vivos, mas, em cada túmulo, deixa um sinal e uma pergunta: você me perdoa? A Guerra Vermelha não os leva, mas, quando a Cidade chora por aqueles perdidos para os Vex e a Noite Infinita, Zavala fica de luto pelo último dos descendentes de Safiyah. Desta vez, não há um corpo para enterrar. Agora, Zavala está sentado à escrivaninha. As agulhas de tricô estão gastas com o uso. Ele as segura com cuidado, lembrando como ela posicionara os dedos dele para que pudesse seguir os movimentos. Ele abre um novelo de lã e começa de novo.