
I: Faisquinha e o Escrivão
História
O Fantasma pairava a alguns metros da modesta fogueira, tentando mais uma vez explicar as regras. O Portador da Luz mastigava um naco de raiz cinzenta enrijecida. Ele a tinha amolecido no fogo, transformando o azedume num gosto que mais lembrava o de pimenta-preta. Com surpresa, ele se viu aprovando o sabor. Logo interrompeu o Fantasma. "Você já explicou como o lance funciona, e eu já expliquei que eu não ligo", concluiu, com uma falsa obstinação zombeteira. "Eu não gosto de nenhum dos nomes que você sugeriu. Além do mais, ou nós dois ganhamos nomes novos, ou nada feito." O Fantasma desceu ao nível do olhar dele. À luz da chama, o porta-fantasma era de um roxo iridescente. "Eu já tive vários nomes bacanas", explicou, "e gostei de vários deles." O Portador da Luz balançou a cabeça. "Você já disse que eu já tive um nome também, mas não quer me contar qual era." "Não posso", corrigiu o Fantasma. O Portador da Luz ficou em silêncio. O Fantasma emitiu um suspiro estático. "Para meros fins hipotéticos", disse, com cautela, "que nome você me daria?" "Você é… uma luz na escuridão", começou o Portador da Luz, antes de se interromper. Vacilou ante o peso súbito daquelas palavras. Desde o começo, aquele Fantasminha fora a única coisa que o impelira adiante. Lhe parecera que cada Guardião encontrado só tinha interesse em lhe responsabilizar por pecados desconhecidos em seu passado, mas, esse Fantasma, quase insuportável de tão diligiente, o trouxera de volta, de novo e de novo. Ele o nutrira de encorajamento e de uma fé inexplicável e irrefreável nele. Ele demonstrou compaixão. Às vezes, quando ele despertava intranquilo com uma ansiedade insondável em seu âmago, o Fantasma pousava em seu peito, cantarolando até que voltasse a dormir. O Portador da Luz respirou fundo para recobrar a compostura. "E, portanto, eu o nomeio Faisquinha." O Fantasma emitiu um gemido insatisfeito, contraiu-se no ar e tombou no chão, onde ficou com a cara na cama de folhas. O Portador da Luz sorriu. "Sinto certa relutância sua, Faisquinha." O Fantasma emitiu um pulso fraquíssimo e rolou sobre as folhas num movimento minúsculo e preguiçoso. Minguou sua luz a um mero piscar. "É péssimo", disse, inexpressivo. "Que exigente", fungou o Portador da Luz. "Tá legal. Eu arranjo um melhor." O Fantasma voltou a pairar, receoso. "Que tal Brilho?", perguntou ele. "Lampejo? Quem sabe Centelha?" "Centelha?" Um arco-íris de cores passou pelo olho do Fantasma. Em geral indicava o cálculo de comportamento inimigo complexo, determinando um resultado de combate, ou mapeando os rastros de centenas de projéteis e os milhões de ângulos possíveis. "Ah, eu gosto de Centelha!" O Portador da Luz aproximou os pés do fogo e se curvou. "Então é uma honra conhecê-lo, Mestre Centelha." Ele estendeu um dedo e balançou uma das pontas de Centelha como um cumprimento. O absurdo do gesto encantou o Fantasma. "E agora que você tem um nome", retomou o Portador da Luz, "talvez eu esteja mais aberto a sugestões para um também." Centelha mergulhou no ar, reconhecendo o progresso do parceiro. O par apagou a fogueira mais cedo naquela noite. Na manhã seguinte, uma transeunte viu o Portador da Luz de Centelha sem o capacete. A Titã o espancou impiedosamente com o martelo flamejante, estilhaçando suas omoplatas e esmagando-lhe a pélvis. Ele morreu horas depois de hemorragia interna. Centelha o trouxe de volta, e juntos os dois viajaram em silêncio por um bom tempo.

II: Identidade
História
Os canos de éter tremeram com sua batida arrítmica, enquanto um recém-chegado era recebido o covil do Aranha. Ele chegara hesitante. Olhos dourados correram pela sala como os de um animal nervoso. Ele vestia as roupas de um traidor. A mortalha branca funerária enrolada nos ombros curvados como sob o peso de enorme fardo. Estava magro de fome, quebrado pela crueldade de um rosto que não reconhecia, mas que os outros desprezavam. Por "compaixão" lhe deram um espaço para descansar, um mínimo de privacidade por entre os canos estridentes. O Aranha, com uma mão na boca em pensamento, tão empoleirado à frente no trono que a frente chegava a pender para o chão. "Nada?", perguntou o Aranha a um de seus tenentes, que respondeu com um mero oscilar silencioso de cabeça. "E você tem certeza? Não se trata de uma…" O Aranha abanou uma das mãos no ar, com se gesticulando para o argumento. "Uma artimanha sagaz?" O silêncio que o recebeu de volta bastava como uma afirmativa conclusiva. "Fascinante", grunhiu o Aranha, descendo do trono num movimento deslizante. Ele pousou com uma elegância surpreendente, mas quando se moveu, foi com um lento coxear, uma fraqueza fingida. Dispensou seu tenente com um gesto exagerado e foi na direção do depósito próximo. Os canos eram mais silenciosos ali, mas só um pouco. Sentado no chão, envolto no tecido branco esfarrapado da mortalha funerária, o homem outrora conhecido como Príncipe Uldren Sov levantou o olhar para o largo vulto do Aranha na abertura da porta. Ele se ergueu e fez uma reverência. "Barão", disse, equivocado, sem saber que o Aranha não dispunha de tal título nem comandava uma grande casa. A resposta do Aranha foi uma risada desdenhosa, cujo tom ele tentou abafar com palavras agradáveis. "Você parece ter sido pisoteado por um Rebaixado", opina o Aranha ao entrar na sala com um silêncio que não batia com a postura recurvada e o passo manco. Seu hóspede — nada menos que um Portador da Luz — se virou para o Fantasma num momento de indecisão. "Já tivemos dias melhores", respondeu o Fantasma. O Aranha se segurou para não criticar a intromissão do Fantasma na conversa, mas fez questão de ignorá-lo. "Meus rapazes disseram ter te encontrado à deriva no espaço. Parece que a sua nave se chocou com alguns… destroços", apontou o Aranha. "Foi muita bondade deles, hã… recuperarem você." O Aranha o rodeou, devagar, olhos azuis brilhando na penumbra do cômodo mal-iluminado. De perto, ele analisou atentamente a postura, a expressão, e até algo íntimo e sutil como o cheiro do Portador da Luz. "Quanto tempo você passou preso lá no vácuo? Morrendo e renascendo… de novo e de novo?" O Portador da Luz se recostou um pouco, baixando os olhos dourados para o chão ao se lembrar. "Tempo o bastante para saber como é a sensação de eternidade. Tempo demais para saber que eu jamais escaparia sem…" Ele levantou o olhar para o Aranha, para o luzir dos olhos infundidos de éter. "Sem ajuda." "É assim que eu sou", retrucou o Aranha, depressa, "alguém que ajuda. Ajuda bastante." Incerto de que o Portador da Luz não o reconhecera, o Aranha se aproximou devagar e olhou o hóspede de cima a baixo. "Acho que não fiquei sabendo do seu nome", acrescentou como um último teste. "Eu…" O Portador da Luz não soube como responder. O Fantasma ficou calado também. "Eu não tenho nome." O Aranha precisou de toda a energia para não soltar uma risada de júbilo. "Ora, assim não dá", insistiu o Aranha, pousando uma das mãos no ombro do Portador da Luz. "Não dá mesmo. Eu não posso ter alguém sob os meus cuidados…", continuou, fazendo questão de enfatizar a última palavra, "sem um nome de verdade." Com um tom astuto, o Aranha se aproximou e sugeriu: "Que tal experimentarmos algum? Só por um tempo. Só você e eu." Ele baixou o tom de voz e sussurrou: "O que me diz de… Corvo?" O olhar do Portador da Luz não traiu nenhum reconhecimento. O do Aranha luzia de voracidade predatória.

III: Uma Gentileza
História
As bestas bélicas não eram nada para a Arcana. Os Legionários Cabais eram lentos a ponto de ela poder massacrar as tropas em campo aberto. Nem mesmo o Centurião daria trabalho quando estivesse desamparado. No entanto, três Psiônicos estavam lá sobre o desfiladeiro mirando nela com fuzis, e, se ela saísse de trás do pedregulho, já era. Druis se ajoelhou na areia vermelha áspera e xingou num suspiro. Não esperara tantos inimigos. Estava sem energia para se teletransportar. Sair daquela enrascada ia doer. Ela respirou fundo, formou uma turbulenta granada de vácuo na mão e… Algo explodiu em algum ponto do desfiladeiro. Tiros — não o rugido de ozônio dos fuzis de balote dos Cabais, mas o estalo da boa e velha pólvora. O Centurião rosnou ordens aos legionários, mas o pânico foi mais forte que os comandos. Druis escutou os gritos guturais conforme algo os matava um a um. Outra explosão calou as bestas bélicas. O tiroteio se aproximou, o Centurião berrou… e então mais nada. Com cuidado, Druis ergueu a cabeça detrás do rochedo. O esquadrão Cabal jazia amontoado ao redor da ravina. Restos dos Psiônicos se espalhavam pela orla do desfiladeiro. O ar estava espesso de fumaça e do cheiro de petróleo. No âmago da carnificina, um Caçador solitário guardou a arma no coldre e passou sobre um cadáver. Ele caminhava com uma eficiência calculada, sem desperdiçar um movimento sequer. Ele era elegante, até para um Caçador. Druis saiu para o campo aberto e levantou a mão, saudando-o. "Oi, Guardião!", chamou ela. "Mandou ver! Meu nome é Druis, e você me salvou de uma baita enrascada." A expressão do Caçador se escondia por trás do capacete pesado. Ele deu um breve aceno e se ajoelhou para examinar a arma do Centurião. Agora de pé, Druis percebeu que era uma cabeça mais alta do que o Caçador. Todo mundo deve parecer alto quando se está escondida atrás de uma pedra, pensou ela. Ela tirou o capacete e deixou o frescor do ar banhar-lhe a pele azul. O cabelo escuro se derramou de onde estivera amontoado sobre a cabeça. Fixou o Caçador com olhos dourados e sorriu. "Eu me candidatei para uma coleta de materiais, coisa simples", explicou. "Transmaterializar os suprimentos, mandar pra Cidade. Fiquei com dor de cabeça a manhã toda e não queria nada barulhento." O Caçador assentiu com a cabeça, sem levantar os olhos, e puxou um catalisador faiscante do fuzil de balote. Druis deu uma risadinha. "Beleza", disse cutucando o cadáver de um legionário Decaído com sua bota,"ninguém que saiba atirar bem assim precisa falar nada." O Caçador hesitou, então se ergueu e se virou para ela. "Eu sou… me chamam de Corvo", apresentou-se, "e fico feliz de ter podido ajudar." A voz do Caçador era suave e refinada. Embora tivesse um quê de frieza, não antagonizava. "E eu, mais feliz ainda", respondeu Druis. "A última coisa de que precisava era ressuscitar com essa dor de cabeça. Eu disse isso aos Cabais, mas eles não escutaram. Que rudes." O Corvo riu educadamente. "Nem me fale. Sempre que eu volto, eu fico meio esquisito por horas." Ele se virou em busca de outras armas Cabais e algo chamou a atenção da Arcana. Ela urrou. O Caçador levantou o olhar em prontdião. "Mas que coisa!", exclamou Druis, apontando para o braço dele. "Você vem do Arrecife, não é? Eu sou da Terra, mas você e eu, temos muita história!" O Corvo baixou a cabeça. Uma faixa de couro havia sido rasgada de suas manoplas, e, sob ela, sua pele azul acinzentada de Desperto era bem visível. Ao levantar o olhar, Druis já havia quase encostado nele com longos passos. A mão dele parou sobre a arma pouco antes da Arcana lhe dar tapinhas nas costas. "Imaginei que sim. Foi sua voz e seu jeito de andar." A mulher alta gingava de um lado para o outro brincando. O Corvo se calou. Druis queria poder ver a expressão no rosto do Caçador sob o capacete. Para o alívio dela, houve uma notificação do rastreador no seu cinto. "Finalmente, boas notícias", disse ela. "Estamos bem em cima das coordenadas dos suprimentos". Ela escaneou a área e localizou a minúscula nave de suprimentos meio escondida atrás de uma rocha. "Já que vocês manteve a carga a salvo dos Cabais, acho que merece uma parte." "Não será necessário", fala o Corvo. Ele se apoiou na outra perna e escondeu a arma nas costas. Foi o primeiro movimento esquisito que Druis o viu fazer. "Eu não disse que era necessário", respondeu ela. "Só uma gentileza entre Despertos de olhos brilhantes. Vai ser rápido." Ela entrou na pequena nave cheia de areia e encontrou as caixas de transporte. Luzes vermelhas baixas piscavam nos seus painéis. Os lacres haviam sido rompidos há muito tempo. Ela espiou sob a tampa da que estava mais próxima. Dentro das garrafas cobertas de sujeira, o líquido ainda tinha um suave brilho laranja. Ela abriu uma, limpou o gargalo de uma com sua roupa, e tomou um gole. Tinha o sabor pronunciado de mel e sal, e queimou sua garganta com o adocicado limpo do gengibre. "Demos sorte!" anunciou Druis ao sair da nave com a garrafa. Mas, o Caçador já havia partido. Druis pôs a garrafa sobre uma rocha plana ao lado da qual sentou. Embora não esperasse o retorno de seu companheiro, ela aguardou, retirando sangue seco da bainha aveludada de sua roupa para se manter ocupada. Em dado momento, ela suspirou, limpou as palmas nas coxas e pegou a bebida. "Ao Corvo", deu de ombros.

IV: Saturno
História
No começo, ele não temia os Desprezados. Como todos que tinham balas para gastar, o Corvo resolvera atirar em algumas dúzias de longe ao encontrá-los em campo aberto. O Centelha lhe dissera que eles tinham relação com os Eliksni, o que fazia sentido — moviam-se como os Eliksni —, mas não permaneciam mortos. Quando sua incursão atacou um dos armazéns do Barão, ele enviou o Corvo imediatamente. Segundo ele, os Desprezados faziam "mal para os negócios", mas o Corvo sabia, pelo ofegar úmido do Aranha, que o que ele queria mesmo era vingança. O Corvo foi discreto. Cuidadoso. Mas os Desprezados eram capazes de senti-lo, fosse pelo cheiro ou por outra coisa. Ele se viu forçado a se embrenhar mais no território deles, abrindo caminho por carcaças soldadas de naves enquanto as criaturas saíam à caça dele. Eles o tinham encurralado numa nave caída com uma saída. Quando eles começaram a entrar, o Corvo descobriu que preferia enfrentá-los bem de longe. Os Desprezados não passavam de carne apodrecida pressionada sob metal, corpos marcados de cicatrizes de cortes e queimaduras, músculos deformados rusticamente pregados no lugar, nacos de tecido marrom amassado em bolsos pendentes. O Corvo recarregou o revólver e derrubou três dos menores. Os capacetes eram mais finos, ou a estrutura óssea era mais frágil, mas um tiro bastou para cada um. O ar se preencheu do odor acre de feridas supurando sob o latão. O Corvo ouviu o ruído de corrente se arrastando sobre metal e se virou. Uma forma imensa se enfiava por um vão no casco da nave. O Corvo disparou. Algumas das pústulas azuis que adornavam o ombro da criatura se abriram. Um gás escasso irrompeu da ferida e lançou um cheiro azedo de solvente gelado. Ele descarregou a arma no corpo do monstro, tapando o túnel com o cadáver. Dois Perseguidores saltaram por outro vão e fizeram menção de flanqueá-lo. O Corvo recuou e recarregou, bem ciente de que estava se fechando mais e mais nos corredores da nave. Ele se virou a tempo de avistar um turíbulo em chamas e se abaixou, mas não evitou a colisão com a lateral sua cabeça. Seus ouvidos zuniam e seu revólver foi ao chão. Os Perseguidores vibraram de empolgação quando algo investiu contra ele. Era um dos Incursionistas maiores, os quatro braços esguios adornados de cintos imundos. Ele se debateu sentindo as tiras de couro ao longo daqueles antebraços se retorcendo e se partindo. Estavam cobertas de linfa seca. O Incursionista estava sobre ele, uivando sob o capacete inexpressivo de metal, prendendo-o no chão com um dos braços maiores enquanto tentava erguer o fuzil com os dois menores para atirar. Uma garra retalhou a bochecha do Corvo enquanto tentava se livrar do Incursionista. Ele afastou o fuzil do queixo, e o forçou na direção dos dois Perseguidores. Tateou sem ver até encontrar um gatilho. A explosão do disparo atingiu os Perseguidores, que tombaram como amontoados berrantes. O Incursionista rugiu e afastou o fuzil das mãos do Corvo, então o jogou para longe. Sem a arma, os braços frenéticos miraram a barriga do Corvo, que o sentiu raspando no couro que ele mesmo vestia e então o atravessaram, enxarcando seus quadris de sangue. Com um riso desvairado, ele puxou o Corvo para perto de seus dentes maltratados. Um muco ralo pingava de algum local sob o metal da máscara, chegando à boca sem lábios da criatura e caindo no rosto do Corvo. Então ele percebeu que a criatura estava falando. Houve um longo momento de horror, seguido por pura repulsa. Uma coisa era ser retalhado por uma criatura insana, mas isso… não podia ficar assim. O Corvo sentiu a Luz envolvendo seu corpo com mais força do que os braços do Incursionista. Ele chutou a criatura como se estivessem os dois embaixo d'água e sentiu um repuxar no estômago aberto. Os braços do Incursionista se fecharam no nada. Ele levantou o olhar, furioso, vendo o vulto cambaleante do Corvo se afastando. Com uma mão no convés enferrujado da nave, o Corvo se amparou. A Luz irrompia do seu corpo como vapor. Faca, pensou ele, e parte da energia que se dissipava se moldou numa lâmina na mão dele. Ele se ergueu. O Incursionista arremeteu para ele, as mãos repletas de garras batendo no chão durante o movimento. O Corvo fez uma finta para a esquerda e puxou o braço pelo corpo, então deu uma volta, caiu de joelho e soltou a faca. A lâmina se enterrou no peito da criatura — a lâmina era Luz, e a criatura se tornou fogo. A fumaça era pura; as cinzas, limpas. A Luz era a arma do Corvo e, quando ele deixou a nave, ela rugiu de novo e de novo e de novo na mão dele. Foi a Luz que atraiu Centelha ao Corvo enquanto ele caminhava como um pilar de fogo em plena noite. E foi a Luz que impediu o Corvo de se entregar à loucura, mesmo com a voz da criatura ecoando pela mente dele: "paipaipaipaipaipai"

V: Theraphosa
História
Centelha conferiu as coordenadas de novo e entrou no depósito de remessas subterrâneo do Aranha. Ele pairou incerto por torres estreitas de caixas empilhadas, sob espirais suspensas de tubos ruidosos, sobre pilhas de vidro fásico esmigalhado e por uma coluna sibilante de fumaça cor de lavanda espessa que obscurecia o que lhe parecia uma opala quântica. (Porém, como ter um isótopo tão instável em propriedade privada era expressamente proibido, Centelha concluiu que deveria ser uma réplica). Ele avistou o Aranha operando uma série de painéis no centro do depósito. Uma série de correntes gravitacionais intrincadas preenchiam o ar com carga, planando delicadamente de um ponto a outro. Portinholas-íris enferrujadas se abriam e se fechavam conforme o Aranha emitia mercadoria para recantos desconhecidos de seus domínios. "Fale-me do Corvo", pediu o Aranha, sem levantar o olhar, e Centelha avistou a si mesmo num monitor diminuto. Ele reparou num mosaico de telas de segurança – corredores na Orla Emaranhada, uma oficina curiosa, os aposentos do Corvo – antes que o Aranha desligasse as imagens e se virasse para se dirigir a ele diretamente: "Como o nosso amigo anda operando em campo?" "Muito bem", respondeu Centelha. "Ele está mais confiante, enquanto…" "Ótimo", interrompeu o Aranha, sem fazer questão de ouvir o resto. Ele puxou um naco rachado de serafita que passava pela corrente de ar, passou as garras pelo objeto e então o recolocou no raio. "Alguém contou a ele?" Não era necessário perguntar o que ele queria dizer. "Não diretamente. Ele sabe que não era uma pessoa boa… reparou depois de todos os Guardiões que caíram em cima dele… mas não ouviu ainda o antigo nome." O Aranha emitiu um pigarro úmido de contentamento. "E não aconteceu nenhuma indiscrição ainda?" O olho de Centelha piscou, e ele soltou um ruído quase imperceptível de processamento. O Aranha se inclinou adiante. "Tem alguma coisa que queira me contar?" "Uma história engraçada, na verdade", explicou Centelha. "Ele topou com uma Arcana que o reconheceu como Desperto, e ela…" "Ele foi visto?", gritou o Aranha, batendo no lado de uma caixa que por ali passava. De dentro, ouviu-se um coral de guinchados choramingantes. Centelha acompanhou a caixa se afastar até sumir de vista. "Não visto", corrigiu Centelha. "Ela percebeu a pele sob as manoplas dele. Ele quis evitar o risco de mais exposição e partiu" "Então ele mentiu, Centelha, até para você." A luz nos olhos do Aranha pareceu ficar baça. Irritado, ele coçou o lado do corpo com um dos braços menores. "É só questão de tempo", retrucou Centelha, delicadamente. "Tem gente falando pelas costas dele. Ouvi rumores de um tal Chalco seguindo ele. Ele também já ouviu os Desprezados o chamando de 'pai'. Ele vai descobrir, mais cedo ou mais tarde." "Eu não estipulei regras para ele à toa." "Seguir regras vai contra a natureza dele", respondeu Centelha, indiferente, então percebeu a insatisfação do Aranha. "Eu sei que é frustrante. Ele pode acabar perguntando algo ao próximo Guardião que aparecer e eu não teria como impedir." O Aranha grunhiu. "Você vai impedir." "O negócio", prosseguiu Centelha, "é que um dia ele vai perceber que quem ele foi no passado não importa. O importante é quem ele é agora." "E ele é", sibilou o Aranha, "o meu investimento. Estou contando com você para botar isso na cabeça dele." Uma caixa danificada flutuou por perto, com Lúmen solto se espiralando pelo raio de gravidade atrás dela. O Fantasma ficou quieto. Pairou meio sem jeito por um tempo, então se ergueu até o olhar do Aranha. "Barão Aranha", chamou Centelha, respeitoso, "nessa breve nova vida, o Corvo já encarou uma boa dose de crueldade. Ele já descobriu o que é sofrer de verdade." Centelha interpretou erroneamente o desdém do Aranha como contemplação e prosseguiu: "Ele não tem mais medo de se machucar. Se quiser que ele fique", sugeriu, "é melhor oferecer mais do que ameaças." O Aranha encarou aquela bolinha impertinente e sentiu a raiva lhe subir à cabeça — mas ele era velho e, além do mais, era esperto. Deixou a raiva fluir por ele, ao redor dele, flutuar em suas águas negras até que só os olhos se revelassem sobre a superfície. "Obrigado, Centelha", respondeu o Aranha, com calma na voz. "Eu chamo se precisar de você de novo." Centelha bipou com orgulho, mergulhou no ar em saudação e flutuou para longe por entre as pilhas de contrabando.

VI: Garantia de Retorno
História
Os canos de éter rugiam. O Aranha estava sentado, apoiado em um lado do trono, sustentando a cabeça na mão, quando o Corvo voltou do campo. "Barão", chamou o Corvo. O Aranha olhou e recebeu o Portador da Luz sem palavras. Ao chegar ao trono, o Corvo se colocou de joelhos. "Do que foi que falamos antes de você sair?" A pergunta retórica do Aranha caiu como um peso nos ombros do Corvo. O Portador da Luz não ergueu os olhos, e foi interrompido pelo Aranha quando começou a falar. "Não confie em Guardiões", foi o lembrete do Aranha. "Eles podem ser úteis, podem ser poderosos, mas não são confiáveis." "Barão, eu só pensei que…" "Não!", rugiu o Aranha. "Não pensou, não! Se tivesse pensado bem, não teria exposto…" O Aranha se segurou, retorcendo palavras num resmungo rosnado enquanto se recostava de volta no trono. "Você fez besteira." O Corvo, com a cabeça baixa e os olhos fixados no chão, não disse nada. Ele conhecia a raiva, o desprazer, a fúria do Aranha, e não queria encarar nada disso de novo. "Mas talvez haja certa…", continuou o Aranha, hesitando antes de escolher a palavra certa "sabedoria nessa rebeldia. Os Guardiões são recursos bons demais para que os desprezemos, em especial no que tange a assuntos além da nossa, hum, especialidade mútua." Foi só então que o Corvo levantou o olhar, indagativo. Por um momento, ele sentiu certo orgulho humilde. Talvez, acreditava, o ato de rebeldia tivesse rompido uma barreira com o Aranha, revelado o Corvo como mais do que só um Portador da Luz conveniente. O Aranha estendeu uma das mãos. "Eu tenho uma ideia para… te proteger." A oferta pareceu sincera, mesmo que o Aranha estivesse falando dele como investimento, não como pessoa. "Mande o Centelha para cá." O Corvo ficou tenso, afastou o olhar, mas pensou bem: não era hora de experimentar rebeldia de novo assim tão cedo. Assentindo, ele demonstrou submissão enquanto Centelha se manifestava. O Fantasma encarou o Corvo com nervosismo e então voou até o Aranha. "Do que… você necessita?", perguntou Centelha. Sem responder, o Aranha apanhou Centelha do ar com a mão. O Fantasma guinchou, e o Corvo se botou de pé, mas sem demora viu as lanças de arco dos guardas do Aranha o interpelando. O Aranha emitiu um estalo no fundo da garganta e pegou um conjunto de ferramentas ali perto. Usadas para abrir os porta-fantasmas de Fantasmas mortos. Serviriam bem para abrir um vivo também. "O que você está fazendo?!", inquiriu Centelha, com medo na voz. O Corvo estava paralisado, já tendo encarado as punições do Aranha antes. Mas… era o Fantasma dele. Parte do Corvo também temia que estivesse interpretando a situação errado. Ele tinha tanta certeza de que o Aranha jamais faria algo que o machucasse de forma permanente. No entanto, quando o Aranha paralisou Centelha com uma ferramenta diminuta, o Corvo começou a ter suas dúvidas. "Pare!", ordenou o Corvo, enquanto o Aranha inseria uma ferramenta plana entre as placas do porta-fantasma. "Não!" Com um estalo, o Aranha arrancou parte do revestimento. Então, olhou para o Corvo e trocou de ferramenta. "Não se preocupe", falou o Aranha, com uma garantia calmante na voz que fluiu pelas veias do Corvo como gelo. "Eu só quero fazer umas… modificações", concluiu, acendendo um maçarico. "Para te proteger melhor… do mundo."

VII: Asa Quebrada
História
O porta-fantasma de Centelha exibia as cicatrizes dos implementos do Aranha. "Eu sinto muito mesmo." A voz do Corvo não passava de um sussurro. Apesar de toda a força de que dispunha como Portador da Luz, ele parecia diminuto sentado no chão de seus aposentos, iluminado pelo luzir pálido de uma única lâmpada. Abrigava Centelha em mãos em concha. O único olho do Fantasma o encarava e piscou, enfraquecido. "Eu sinto tanto, tanto." "Não tem problema." Centelha não conseguia culpar o Corvo. "E-eu acho que vou ficar bem. O Aranha é…", tinha que escolher as palavras com cuidado, "muito perito em modificar a arquitetura de um Fantasma." "Ele colocou uma bomba em você!", sibilou o Corvo, a voz vacilando. "Mas eu ainda estou aqui. Com você", garantiu Centelha. "E você ainda tem a Luz. É isso que importa." O Corvo ergueu os olhos para o teto, incapaz de encarar o dano feito ao Fantasma. Ficou em silêncio, assim como o cômodo — puro silêncio, além do maldito ruído dos canos. "Fui eu que coloquei você nessa situação", culpou-se o Corvo, silencioso. "Eu deixei isso acontecer." "Você não teve escolha. Não podemos mudar o passado", respondeu Centelha, flutuando e saindo das mãos do Corvo, meio desajeitado, como um pássaro com uma asa ferida. "Só podemos olhar para o futuro." O Corvo se forçou a encarar o único olho piscante de Centelha. "O meu futuro é com você. Você é tudo que eu tenho. A única pessoa que…" baixou a voz, receoso dos ouvidos secretos do Aranha, "que se importa comigo." "Você não sabe quem se importa com você até conhecer a pessoa", protestou Centelha, antes de se aproximar do rosto do Corvo. "Você não é um prisioneiro", adicionou ele. "Você… pode ir embora. Levar uma vida normal. Sem a Luz." O Corvo cerrou a mandíbula, apertando os dentes. "Não", disse entre os dentes. "Não vou te abandonar. Você jamais faria isso comigo." O Fantasma afastou o olhar pensativo, e pairou para cima e para baixo. "Você tem razão", concedeu, virando-se de volta para o Portador da Luz antes de se aproximar e dar uma batidinha no nariz do Corvo com o porta-fantasma. "Eu jamais vou te deixar." O Corvo ergueu a mão e pegou Centelha na palma. "Nós somos tudo o que temos", sussurrou ele, puxando os joelhos para perto do corpo e Centelha para ainda mais perto. "O Aranha jamais vai deixar a gente sair…" "…mas pelo menos temos um ao outro."